Por Julia Figueiredo, associada sênior de Proteção de Base Comunitária do ACNUR Brasil
“É vida! É vida!”, as funcionárias do hospital gritavam para abrir caminho enquanto corríamos e empurrávamos a maca pelo corredor. Em algum momento, eu comecei a gritar isso também. Elas queriam dizer que a situação era urgente, mas não era trágica. Uma mãe estava prestes a dar à luz e era necessário chegar rápido à sala de parto.
Mas você pode se perguntar o que eu, uma trabalhadora humanitária da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), estava fazendo ali.
Eu vou explicar.
Era 27 de julho de 2023, quinta-feira, e eu havia chegado para trabalhar em um dos abrigos temporários de acolhimento a refugiados afegãos em São Paulo. Como eu atuo com proteção de base comunitária, mantenho contato próximo com as pessoas refugiadas.
Naquela semana, eu havia realizado alguns atendimentos com uma família composta por uma mulher grávida, o marido e a filha do casal, de 3 anos.
Logo que cheguei naquela manhã, fui avisada de que ela estava em trabalho de parto, e subi até o quarto para vê-la. Ela estava com muita dor e o marido estava muito nervoso, então decidimos chamar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU).
Quando a ambulância chegou e os paramédicos vieram atendê-la, tivemos de intervir para que a família não se sentisse desrespeitada naquele momento tão íntimo. A equipe de socorristas era formada por homens e precisamos explicar a eles que, por uma questão de sensibilidade cultural, eles não poderiam tocar nela.
No Afeganistão, mulheres são assistidas apenas por mulheres na hora do parto. Nem o pai da criança pode acompanhar o momento.
Enquanto outros colegas ficaram para cuidar da filha mais velha e apoiar a gerência do abrigo, eu embarquei na ambulância com os dois. Naquele momento, eu me dei conta de que éramos só nós.
Os paramédicos me orientaram a deitar ela de lado, a amarrar o cinto de segurança e a proteger a barriga dela. Naquele trajeto emocionante e em alta velocidade, eu ainda precisava manusear o aplicativo de tradução do celular para responder às dúvidas da equipe, pois a família só falava persa.
Ela já havia tido outros partos? A que horas começou o trabalho de parto? Como estava a dor? Ela era alérgica a alguma medicação?
Não sei quanto tempo estivemos na ambulância, mas eu também estava preocupada com as diferenças culturais na hora do atendimento no hospital. Pedi aos paramédicos que garantissem o atendimento feito apenas por uma equipe feminina, ao que eles foram muito responsivos.
Chegamos ao hospital e ela foi para a consulta, onde foi constatado o trabalho de parto já em estágio avançado. Foi a partir daí que corremos com as funcionárias do hospital gritando “é vida!”.
Minha maior preocupação naquele momento era que o casal entendesse quais seriam os próximos passos daquele procedimento, que também era novo para mim. Imaginava eles naquela situação tão delicada, em um país que não conhecem, ouvindo um idioma que não entendem, e tentei sensibilizar a equipe médica para esses pontos.
Eu pensei que não teria como acompanhá-los na sala de parto, mas a equipe achou que minha presença seria positiva para todos e fui paramentada com avental, máscara e touca.
Na sala, eu estava de um lado da maca e o marido da grávida, de outro. Cada um segurava uma mão dela, e eu ainda tentava conversar com a equipe de saúde e traduzir tudo.
Fui surpreendida pela médica quando ela comentou que, em geral, quando a pessoa muda de país, é ela que deve se adaptar à cultura, e não o contrário. Mas, antes mesmo de eu intervir, ela seguiu falando: naquele caso, a mulher não teve escolha, ela é uma pessoa refugiada. Ela teve que fugir. Ela não escolheria dar à luz no Brasil, longe da sua casa, da sua família, da sua cultura.
Quando a médica verbalizou isso, houve um entendimento de toda a equipe sobre a sensibilidade do caso e de que todos trabalharíamos juntos para fazer aquele momento dar certo.
Logo, nasceu uma linda menina. Uma pequena brasileira.
O pai estava muito emocionado, porque ele, assim como eu, nunca havia testemunhado um nascimento. Eu estava muito emocionada também, e nem sabia que ainda demoraria mais uma hora para ajudar com a documentação da menina. A parte mais difícil foi registrar o nome como eles queriam, sendo que até o alfabeto deles é diferente do nosso.
Ver a acolhida do hospital também foi muito emocionante para mim. Até mesmo as refeições da família foram adaptadas pela nutricionista para que a mãe tivesse acesso a bebidas quentes e não tivesse medo de comer algo não permitido por sua cultura.
Minhas e meus colegas no Escritório do ACNUR em São Paulo relatam, assim como essa, tantas outras histórias emocionantes e duras que surgem no dia a dia do intenso trabalho de campo, particularmente no último ano e meio dedicado aos refugiados afegãos. Assim como meus colegas em Roraima, Amazonas e Pará foram peças fundamentais em várias histórias de pessoas venezuelanas nos últimos mais de cinco anos de acolhida humanitária na fronteira. Hoje é o dia de reconhecer esse trabalho.
E eu penso em tudo o que essa família – assim como tantas outras – passou para chegar até aqui. Penso na jornada desgastante e no medo do futuro, e desejo que esse nascimento represente um recomeço mais seguro, digno e feliz.
Que seja uma história de esperança.