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14/JAN -
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Políticas Identitárias ou Identitarismo um comentário. Por Laurenio Sombra
O professor de Comunicação da UFBA, Wilson Gomes, que tem sido um dos críticos mais acerbos das “políticas identitárias” (ou “identitarismo”) fez uma coluna emblemática na Folha de São Paulo, 27/12, a partir dos dados de autoidentificação racial do último censo. Basicamente, seu ataque é o seguinte: como há alguns anos o IBGE assumiu que a população “negra” é a que se identifica como preta ou parda, Gomes defende que essa categorização é uma espécie de traição ao brasileiro que na verdade se vê majoritariamente como “mestiço”.
Toda a coluna de Wilson Gomes é baseada em uma dicotomia fundamental: de um lado, os “cidadãos”, a população em geral que faz a sua autoidentificação. Para Gomes, é óbvio que quem se identifica como pardo que ressaltar sua condição “mestiça”. Se se considerasse negro, diria que era preto! Do outro, “jornalistas e militantes”, “a sociologia militante”, “os militantes da causa negra”, “o cardinalato dos influenciadores”, as “autoridades identitárias”, “os movimentos negros”, “as polícias raciais”. Todas essas nominalizações são evocadas, não há interlocutores concretos.
A contraposição é mais ou menos assim: de um lado, o jeito “natural” do brasileiro se identificar: branco, preto/negro (a mesma coisa para Gomes), mestiço (esse, a verdadeira cara do Brasil). Num grande enaltecimento do “mestiço é lindo”, Gomes enaltece Flávio Dino como “caboclo inzoneiro”, “onde a Amazônia e o Nordeste se encontram num abraço gostoso”. De outro lado, contra a “naturalidade” das identificações, a tentativa militante/identitária de distorcer o Brasil, de talvez criar um “nós contra eles”. Aqui se localiza o “cardinalato dos influenciadores”, as “autoridades identitárias”, o movimento negro etc. Cuidadosamente evocado com sujeitos ocultos (“ignora-se o fato de que...”, “foi esquecida...”, “chama-se...”).
Um olhar desatento quase assume como razoável o que ele afirma. Não é possível se garantir que todos os brasileiros que se identificam como pardos se reconheçam como negros (embora cada vez mais isso pareça patente para muitos deles). Mas não há também qualquer evidência de que “mestiço” seja o melhor jeito de se identificarem. O problema, entretanto, está na origem da percepção.
As definições de raça nada têm de “natural”, desde o seu princípio. O que fez com que a população brasileira fosse separada basicamente entre brancos, pretos/negros e “índios” foi, desde o seu princípio, um fundamento racista. Nesse fundamento, “branco” foi sempre a categoria a ser buscada, evocando certo princípio de superioridade. Os processos de “embranquecimento” do Brasil buscados desde o século XIX estavam associados a essa premissa, e eles tiveram múltiplas operações, desde incentivo estatal à emigração europeia, condenação (e depois folclorização) da cultura negra, passando pela construção de um imaginário sempre favorável ao branco nas mais diversas instâncias.
Nesse contexto, o “mestiço” (o “mulato”, por exemplo) representava uma etapa intermediária desse branqueamento. No “preconceito de marca” brasileiro (como disse Oracy Nogueira já nos anos 50), o mestiço seria menos agredido pelo racismo do preto retinto. Mas jamais estaria incluído no imaginário da elite branca. Ganhou uma condição imaginária das canções praieiras, das “morenas”, das “mulatas” ou do “mulato inzoneiro”, sem abalar as estruturas principais do racismo padrão.
Pessoas do movimento negro costumavam dizer, um pouco a sério um pouco na galhofa, que dois indicadores claros do racismo brasileiro estavam na discriminação policial e dos porteiros dos edifícios de classe média-alta. Em ambos os casos, o “mestiço” nunca foi totalmente poupado por esse olhar censor popular. Também nunca deixou de ser notado em cursos onde se esperava receber apenas uma elite branca, como nas faculdades de medicina.
Repetindo: as definições raciais nunca foram “naturais”, sempre foram construídas. E assim foi o racismo à brasileira. Por que seria de se esperar que a reação do movimento negro seria diferente? No enfrentamento ao racismo histórico do país e às falsas ilusões da nossa “democracia racial”, fez parte da luta do movimento negro o reconhecimento das várias matizes das “pessoas de cor”, a percepção de que pessoas não brancas também compunham esse amplo leque da população negra no país. E essa luta teve a eficácia de chegar à classificação do IBGE, às políticas afirmativas e mesmo em discursos cada vez mais amplos.
Essa ação política do movimento negro iria incomodar. Seria ingênuo pensar o contrário. Desde livros que começaram a atacar o movimento negro quando cresciam as políticas afirmativas (Demétrio Magnoli, Ali Kamel, Antonio Risério foram alguns dos “pioneiros”) até reportagens de toda ordem, incomodava pensar que somos um país de maioria negra e não do “mestiço inzoneiro”. Essa revelação abre a ferida do nosso racismo estrutural, até porque diariamente associada à evidência de diversas mazelas muito concretas vividas pelas pessoas negras (os ataques da polícia, o nível salarial, a falta de acesso a cargos maiores etc.).
Para além do posicionamento contrário (que é um direito), o afã do ataque apresentou alguns fatos no mínimo questionáveis. Gomes chegou a afirmar que “apenas 10,2% se definem como negros”. Na verdade, eles se definem como pretos, numa confusão emblemática. Mas há algo mais grave. Em função de algumas auto identificações oportunistas de candidatos a políticas afirmativas como negros, universidades e outras instituições iniciaram um processo de hetero identificação, com uma comissão que confirma as identificações como negro.
Wilson Gomes afirma que essas comissões estão excluindo os pardos. Isso seria em tudo contrário ao espírito do processo, já que ele visa justamente confirmar a população negra (preta e parda). “Na hora das cotas em concursos ou de dividir cargos, chama-se a polícia racial, ou ‘comissões de heteroidentifiacação’, para tirar os pardos”. Essa é uma acusação grave.
Wilson Gomes a faz a partir de pesquisas sólidas, ou apenas de casos isolados, recortados dos jornais? A resposta a essa pergunta pode ser emblemática para se avaliar o grau de seriedade dos ataques ao movimento negro. A experiência de heteroidentificação é recente no Brasil. Quando começaram as políticas afirmativas, revistas anunciavam casos de ambiguidade nas politicas (irmãos divididos entre negros e não negros etc.), e as apresentavam como “provas” da falsidade do processo. Agora, novamente os casos de heteroidentificações são sugeridos como ações deliberadas da “polícia racial” para excluir a população parda. Como já deveria se saber, o país ainda tem muito a navegar.